Um levantamento de 2019 da Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que 13 milhões de brasileiros são diabéticos. Se elevado em consideração o número populacional do país na época, 209,4 milhões, a indicação é que aproximadamente 6,2% da população sofriam mal. Outro estudo, da Federação Internacional de Diabetes (IDF), projetou que até 2045 haverá aumento de 62% de casos da doença na América Latina, alcançando a marca de 42 milhões de pessoas diabéticas.
Grande parte das amputações de membros inferiores está relacionada à doença. Mesmo sendo o último recurso, a cada 30 segundos uma pessoa diabética é amputada no mundo. A afirmação é do professor associado do departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador do Serviço de Cirurgia Vascular dos hospitais Risoleta Tolentino Neves (MG) e do Hospital das Clínicas (MG), Tulio Pinho Navarro. O médico e uma equipe multiprofissional realizaram, em 2019, o primeiro transplante do mundo de células-tronco adultas do tecido adiposo em uma paciente diabética condenada à amputação de membro inferior.
O estudo foi desenvolvido pelos médicos Túlio Navarro e Alan Dardik, pela pesquisadora Lara Lellis Minchillo e pela bióloga Lucíola Barcelos. Elaborado por meio de uma parceria entre a Faculdade de Medicina da UFMG, a Universidade de Yale (EUA) e o Instituto de Ciências Biológicas (IBC), da UFMG, a pesquisa conta com a participação das equipes de cirurgia vascular e cirurgia plástica do Hospital Risoleta Tolentino Neves (HRTN) e do Hospital das Clínicas, além das equipes de enfermagem, fisioterapia, nutrição e clínica médica do HRTN e biologia do ICB.
Para falar sobre o procedimento e como foi desenvolvido o estudo, convidamos o professor Túlio Navarro para essa entrevista. Ele ainda ressalta o desafio brasileiro em enfrentar a COVID_19 e da necessidade dos governos e entidades privadas reconheçam o valor do SUS e das pesquisas científicas em território nacional, realizadas nas universidades públicas.
1 – Quando teve início a pesquisa sobre o uso de células-tronco para tratamento de pacientes com pé diabético?
Os primeiros estudos pré-clínicos (em animais) foram publicados no ano de 2003. Inicialmente, pesquisou-se o uso de células-tronco de medula óssea em camundongos. Devido aos resultados iniciais animadores e consistentes, a pesquisa logo evoluiu para ensaios clínicos (pesquisa em humanos). Em 2006, tivemos o primeiro estudo em humanos publicado, no qual o cientista Zhang Et Al. experimentou o uso de células-tronco derivadas de sangue periférico no tratamento de 62 casos de isquemia de membro inferior. Na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), iniciamos o estudo em junho de 2019 usando células-tronco derivadas do tecido adiposo do próprio paciente.
2 – Como foi desenvolvida a técnica para o procedimento realizado?
Desde o início, nossa meta foi desenvolver um método acessível, que pudesse ser aplicado no Sistema Único de Saúde (SUS). Para isso, nosso grupo estudou inúmeros protocolos publicados e fez sucessivas simulações com os poucos recursos que dispúnhamos. Priorizamos o método chamado “mecânico”, o qual não envolve o uso de enzimas, pois a utilização delas eleva o custo e a duração do procedimento. O resultado foi uma técnica própria, rápida e de baixo custo. Com ela realizamos todo o processo desde a coleta até a administração das células em cerca de 3 horas com baixíssimo risco para nossos pacientes.
3 – Como as células-tronco atuam no organismo do paciente diabético?
As células-tronco possuem a capacidade de promover regeneração, isso é, restauração da função de um órgão por meio da substituição de células e tecidos. A regeneração ocorre por meio de citocinas, substâncias químicas pelas quais as células se comunicam. As citocinas liberadas pelas células-tronco têm efeitos locais, como angiogênese (surgimento de novos vasos) e inibição do apoptose (morte celular); e também efeitos sistêmicos, como imunomodulação (alteração positiva nos padrões de resposta do sistema imunológico). Assim que administradas, as células-tronco iniciam um processo de recrutamento de outras células, influenciando seu comportamento de forma a favorecer a regeneração da área adoecida.
4 – As células-tronco mesenquimais têm diferencial nesse procedimento ou poderiam ter sido usados outros tipos de células?
Existem três grandes grupos de células-tronco: embrionárias, adultas e induzidas. As células-tronco mesenquimais são células-tronco adultas e, por isso, apresentam vantagens em relação aos demais grupos: têm menor chance de se diferenciar em tumor, não existe conflito ético no seu uso nem a possibilidade de rejeição imunológica (essas células podem ser retiradas do próprio paciente que irá recebê-las). Por essa razão, essas células foram escolhidas. Dentre as
células mesenquimais, escolhemos as derivadas de tecido adiposo por serem mais facilmente isoladas e demonstrarem grande capacidade regenerativa. O uso de células embrionárias não é viável por questões éticas: é necessário destruir o embrião para obtê-las. No futuro, acreditamos que será possível utilizar também células-tronco induzidas, as chamadas IPSCs, cuja tecnologia para obtenção ainda não está muito desenvolvida.
5 – Quantos procedimentos já foram realizados atualmente no país?
Foram realizados três procedimentos. O estudo foi interrompido devido à pandemia da Covid19, mas esperamos retomar o estudo em breve.
6 – Existe projeto semelhante em outros países ou o Brasil é pioneiro nesse projeto?
Fomos o primeiro grupo a iniciar o uso de células-tronco no tratamento de pé diabético e isquemia de membro inferior. Até a presente data, não temos conhecimento de outros grupos de pesquisa trabalhando na mesma frente. Seguimos na vanguarda, mas muito abertos a colaborações.
7 – Quais os motivos que levam à amputação do diabético e como a terapia celular poderia mudar esse cenário?
A amputação é sempre o último recurso. Apesar disso, a cada 30 segundos uma pessoa sofre amputação devido ao diabetes no mundo. Isso ocorre porque o excesso de glicose no sangue dos diabéticos é tóxico para as células que compõem os vasos e nervos, causando doenças crônicas nessas estruturas. O dano ao sistema arterial, aliado às deficiências neurológicas, resulta em uma grande propensão a isquemia (falta de sangue) e feridas que não cicatrizam, o que pode ameaçar todo o membro, levando à necessidade de amputação. A terapia celular promove angiogênese (surgimento de novos vasos) e imunomodulação (alteração dos padrões de resposta do sistema imunológico). Esses processos ajudam no aporte de sangue para o membro, além de promover cicatrização de feridas e combate a feridas evitando, assim, a amputação.
8 – A medicina regenerativa no Brasil avança. Quais são as suas perspectivas diante das novas normas regulatórias referentes à terapia celular no país?
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) divulgou, em 2019 e 2020, algumas resoluções que liberam as terapias celulares em alguns contextos. O Ministério da Saúde divulgou, em março de 2021, uma norma regulatória para padronizar os centros que fazem terapia com células-tronco (porém somente disposições sobre como deve ser a área física e etc.). Nossa perspectiva é que favoreça essa terapia em casos até então sem boas possibilidades de tratamento.
9 – Qual a sua opinião sobre a coleta e o armazenamento de células-tronco mesenquimais das crianças para um possível uso no futuro?
Atualmente pode haver benefício no armazenamento de sangue do cordão umbilical no tratamento de algumas leucemias da infância. No entanto, em um futuro próximo, a técnica de indução de células-tronco a partir de células adultas estará bem desenvolvida e amplamente disponível. Nesse cenário futuro será possível induzir basicamente qualquer célula adulta diferenciada a se comportar como uma célula-tronco. Dessa forma, as pessoas poderão ser um reservatório de potenciais células-tronco e, portanto, guardar o sangue do cordão poderá não ter mais sentido.
10 – Quais são as suas perspectivas sobre as pesquisas e estudos desenvolvidos com as células-tronco mesenquimais no que diz respeito à medicina regenerativa e cura para as doenças que hoje ainda são incuráveis?
A medicina regenerativa representa uma ruptura de paradigmas. Por décadas a comunidade científica vem se preocupando em entender o código da vida e responder de forma preventiva/curativa. A medicina regenerativa nos coloca em uma posição de coautores, pois ela proporciona a capacidade de nos reinventarmos a partir da criação de células e tecidos. Tamanho poder é a esperança não somente para pacientes com doenças atualmente incuráveis, mas para toda a humanidade. Acredito que nos próximos anos as terapias celulares, assim como as terapias genéticas e outras tecnologias regenerativas, serão a primeira opção de tratamento para uma parcela das doenças. Como pesquisador, minha preocupação é tornar essas tecnologias acessíveis a todos de forma ética e segura.
11 – Fique à vontade para comentar e incluir o que desejar.
Estamos enfrentando o maior desafio sanitário do século. Precisamos que os governos e entidades privadas reconheçam o valor do SUS e das pesquisas científicas em território nacional, realizadas nas universidades públicas. Precisamos de maior financiamento.